Eu acordei confusa. Eu levantei minha cabeça e olhei para os lados. Eu estava na biblioteca, e havia adormecido enquanto lia um livro. Talvez tudo aquilo com o fantasma tivesse sido um sonho estranho. Muito estranho. Eu me levantei e fui guardar meu livro na prateleira, quando reparei que minhas roupas eram diferentes. Era um vestido verde água com mangas bufantes, feito de um material que talvez seja seda. Que estranho. Não lembro de ter-me vestido dessa maneira. Bem, eu nem sequer lembro de como eu cheguei aqui, então… Quando guardei o livro em sua estante, vi que a fogueira estava acesa, e queimando com uma força que não havia visto antes. Ao me aproximar, eu senti algo perfurar minhas costas. Eu senti o sangue quente escorrer. Senti minha visão escurecer, e finalmente, eu cedi, caindo ao chão.
— …acordada? Por favor, senhorita Virginia, me responda!” — o fantasma pedia, chacoalhando o corpo da menina inconsciente. Então, ela acordou de susto, soltando um grito agonizante.
— O que houve? — o fantasma indagou.
— A… A bibili…Biblioteca, o sangue, a lareira, eu… — Ela começou a entrar em pânico, e engasgava em suas próprias palavras.
O fantasma apenas abraçou-a como em instinto.
— Não se preocupe, pequena Virginia. Foi apenas um breve delírio.
Conforme Virginia se acalmava, ele se afastava, e Virginia conseguia observá-lo melhor.
— O que houve com você?— Como num passe de mágica, o fantasma aparentava ser mais vivo.
— Ah. Infelizmente não tenho certeza.— ele disse, levantando-se do chão. — Mas, aparentemente, voltei a ser sir Simon, do Marquesado de Canterbury.
Sir Simon era um homem consideravelmente alto para sua época. Seus cabelos eram negros e sua pele era pálida, já apresentando diversos fios esbranquiçados e linhas de expressão. Mas o que mais preocupava era o quão magro estava e o quão rasgada sua roupa era. Estava em trapos.
— Não pareces o esperado de um Marquês— disse ela, realçando o óbvio.
— Ah, mas esta é uma longa história, pequena Virginia. Vamos, siga-me.
Sir Simon conduziu Virginia pelos corredores escuros e frios, que levavam ao desconhecido. Virginia não tinha mais tanta certeza de que era o mesmo lugar, nem se ela deveria realmente fazer isso. Mas, independentemente disso, ela seguiu seu caminho.
Assim, ela ouviu as vozes. De novo. Elas começavam com pequenos sussurros. Falando que ela deveria voltar. Que ele estava mentindo para ela. Que ele não vaila a pena. Até que eles aumentaram o volume. E em questão de segundos eram gritos ensurdecedores, falando que ela ia morrer, que o anjo da morte era impiedoso, que era tudo em vão, que o descanso eterno não era nada mais que uma doce, doce mentira.
Ela empurrava suas mãos contra seus ouvidos. Tentando abafar o som. Era quase como se tentasse quebrar seu próprio crânio. Ela cedeu. Jogou-se de joelhos no chão, ainda apertando seu crânio. Sua cabeça doía. Demasiado. Era isso. Ela desistiria. As vozes a ganharam.
Sir Simon, como o esperado, entrou em desespero. Ele precisava de sua ajuda. Virginia não parava de se debater. Não conseguia andar.
— Estamos tão próximos! — exclamava Sir Simon, vendo a fraca luz adiante. — Por favor, Senhorita Virginia, levante-se!
Mas não havia jeito.
Simon então, teve que a levantar do chão e levá-la com seus próprios braços secos e fracos.
Ela, por sorte não se debatia mais, pois as vozes se calavam, e eles estavam cada vez mais perto da luz. Ele andava lentamente, desacelerado pelo peso em seus braços, mas ele chegara lá.
Ele deixou Virginia no chão, e ela lentamente abriu os olhos, quase cega pela luz.
— Vamos? — Sir Simon perguntou. Ela se levantou e respirou fundo. De cara com a luz, sabia que atrás dela teria que enfrentar a maior escuridão. Ela estava nervosa, mas ao mesmo tempo, tinha coragem.
Ela adentrou a luz, e Simon adentrou logo atrás.
…
Ela abriu seus olhos novamente. Rapidamente viu que não estava mais no mesmo lugar. Era um lugar calmo, onde se ouvia o cantarolar dos pássaros, se sentia o passar da brisa, e se ouviam as ondas quebrando sobre a orla. Eles estavam em uma ilha. Ela se levantou da grama fofa onde se encontrava, e viu, logo adiante, uma árvore, onde repousava uma bela mulher. Seus cabelos brancos reluzentes escorriam sobre seu ombro, fazendo contraste com sua pele escura. Ela usava um vestido que aparentava ser leve e esvoaçante. Branco, a não ser por sua barra escurecida. Ela parecia em etérea harmonia, tocando habilmente uma lira. Era um anjo, claramente.
Quando Virginia pôs- se de pé para falar com tal anjo, viu que Sir Simon jazia ao seu lado, desacordado. O anjo, ao notar a presença de Virginia, parou de tocar a lira, deixando a de lado. Ela sinalizou para que Virginia se aproximasse, e, ao notar a incerteza da garota, falou:
— Não tenha medo.
A garota então aproximou-se dela, e quando ela disse para que Virginia se sentasse, a garota o fez.
— Então, o que fazes aqui?
— Eu… am… vim falar com o Anjo da morte.
— Já falas com ele.
Virginia arregalou os olhos, surpresa.
— Então, diga, o que fazes aqui?
Ela respirou fundo. Não era todo dia que se falava com um anjo, ou como Anjo da Morte. Porém, ela não tinha mais o que fazer, a não ser o que Sir Simon lhe pediu.
— Sir Simon pediu para que eu falasse com a senhor…a…
— Hm… eu prefiro Senhorita.
— Isso, Claro! Senhorita! — Sue rosto ficou pálido ao ter cometido um erro na frente de tal anjo.
O Anjo da Morte estendeu sua mão para encostar no ombro de Virginia, mas ela esquivou-se, assustada.
O anjo retraiu sua mão. — Não se preocupe! Sua hora ainda não chegou.
Com isso, Virginia sentiu-se mais confiante.
— Ele me pediu para que eu pedisse que…— ela engoliu em seco. — Que… deixasse ele descansar em paz.
O Anjo colocou uma mão em seu queixo, e posou pensativa.
— Mas por quê? Por quê queres ajudar este homem miserável?
— Ele e sua miséria não me deixam descansar. E eu temo que, por minha família, ele não consegue descansar, também.
O Anjo ainda estava quieto. E assim ficou, por um tempo.
— Você sabe por que Sir Simon ainda vive?
Virginia a olhou, confusa, e negou com a cabeça.
— Ele vive pois não conseguiu se acertar com a mulher quem matou.
— Ele não pode se redimir mais com essa mulher?
— Poder ele pode, ele sempre pôde.
O anjo roçou as suas belas mãos em sua lira, produzindo uma melodia suave.
— A questão é se ele quer…
Assim que ela terminou, uma mulher confusa apareceu de trás da árvore. Seu belo vestido verde-esmeralda carregava uma enorme mancha vermelha sobre seu peito, que parecia ter escorrido por horas.
— Você acredita que ele o fará?”
Virginia olhou para Simon, que ainda estava esparramado no chão, e logo após para a mulher, que ainda estava confusa.
— Acredito, sim.
E, com mais um soar da lira, Sir Simon saiu de seu sono profundo. Tão confuso quanto Virginia estava antes, percorreu o lugar com seu olhar, e…
— Eleanor!
Ele levantou-se num piscar de olhos e se dirigiu à mulher sem pestanejar.
Puxando-a para si e para um abraço, ele se desculpava.
— Eu não sei o que aconteceu comigo, mas você não o merecia. Mesmo que eu não gostasse de você, não devia ter feito o que fiz. Eu sinto muito.
O arrependimento em sua voz era quase tangível, tamanho era seu pesar. Eleanor estava silenciosa, engolindo o que ele falava. Depois de um tempo, o empurrou para longe de si.
— É claro que não perdoo, seu cretino!— ela gritou, deixando-o atônito. — Você me esfaqueou! Há mais de 300 anos! E só agora você vem me pedir desculpas!
A discussão ia e voltava, sem ir para lugar nenhum. O Anjo, que já se irritava com tal briga banal, tocou sua lira de repente, e os dois se silenciaram.
— Esta discussão já se estendeu por demais.
Ela levantou-se de sua sombra à árvore e entregou ao Sir Simon um mapa.
— Você conseguiu seu descanso. Agora, não irrite ninguém mais.
Ele acenou com a cabeça.
— Eleanor, você pode voltar para o Céu.
— Por quê ela vai pro Céu? — ele estava indignado.
— Por que eu não matei ninguém!— Eleanor retrucou.
— Chega de discussão. — o anjo ordenou.
Quando tudo caiu em serenidade completa, a lira foi tocada mais uma vez, e ambos viraram brisa. O Anjo se virou novamente para Virginia, e estendeu-lhe a mão para que se levantasse. Virginia aceitou a ajuda, e pôs-se em pé.
— Você tem um coração de ouro, capaz de ajudar tal homem, Virginia.
Virginia sorriu. Sir Simon com certeza não era o tipo de homem que valeria a pena ajudar, mas ela se orgulha que o fez.
— Venha, eu acompanharei você até a sua casa.
Ambas andaram pela ilha até chegar na areia da beira do mar, com as ondas se aproximando perigosamente de seus sapatos.
— Antes de você ir, pegue isso. — disse o anjo, entregando uma pequena caixa. Dentro dela, havia jóias reluzentes de todos os tipos.
— Elas eram de Sir Simon.
Virginia hesitou em tomar a caixa.
— Eu não posso aceitá-las.
— Você as merece. Sir Simon não precisa mais delas.
Enfim, Virginia aceitou a caixa.
— Para voltar para casa, apenas mergulhe no mar. — o Anjo falou, apontando para a imensidão do mar que estava afrente. — Não esqueça de prender a respiração e de segurar a caixa com firmeza.
Virginia tremia só de pensar em entrar no mar gélido completamente vestida, mas ela não tinha escolha. Ela deu o primeiro passo, e quase se arrependeu ao sentir o frio percorrendo seu corpo. Ela andentrava mais e mais ao mar, e a sensação de suas roupas molhadas coladas em seu corpo a incomodava profundamente, mas ela não parou. Quando o mar já alcançava sua cintura, ela olhou para trás e viu que o Anjo ainda a observava.
— Adeus! — Ela acenou para o Anjo.
— É apenas um até logo. — O Anjo acenou de volta.
Virginia se assustou momentaneamente, mas se tranquilizou logo após. Afinal, todos vamos morrer. Ela respirou fundo, e deu um mergulho, fechando os olhos e segurando firme a caixa perto de seu peito. Ela se deixou afundar, até quando ela percebeu que não havia mais água ao seu redor.
Ela abriu os olhos. Estava presa em uma parede. Mas com apenas uma movimentação, ela saiu da parede e caiu em um corredor. Ela ouviu passos vindo na sua direção. Ela havia voltado para casa.