Em um instante o lambri se fechara atrás deles e o Salão das Tapeçarias ficou vazio. Agora estavam os dois de mãos dadas, em uma caverna fria e escura. Virginia não conseguia ver nada.
― Aqui está mais frio que o inverno lá fora ― disse Virgínia batendo os dentes. ― Sorte sua de ser um fantasma.
― Vamos! Corra que você vai esquentar! ― disse o fantasma preocupado. ― Não temos tempo!
O fantasma puxou a menina, carregando-a pelo longo e estreito caminho escuro. Ela pisava alto, para não tropeçar nos pedregulhos irregulares. O fantasma flutuava veloz, sem se preocupar com tropeços. Com aquela alegria, seus poderes haviam voltado à tona. Depois de um tempo, os olhos de Virgínia se acostumaram com o escuro, mas não mudou muita coisa, pois as paredes e o piso eram tão negros, que tinham uma cor violeta. Mas, após certo ponto extremamente demorado, eles viram uma grande porta de carvalho, enfeitada com grandes tachas enferrujadas, e o piso virou um porcelanato colorido, muito sujo e cheio de manchas por causa da umidade da caverna. Eles já haviam corrido por mais de duas horas, e a grande porta não estava nem perto. Sir Simon ficou ainda mais empolgado, e queria ir ainda mais rápido mas Virgínia que estava exausta, simplesmente se sentou no chão frio e sujo. Nesse momento, as mãos se separaram e o fantasma continuou até perceber que ela não o acompanhava mais. Ele se virou, a encarou, mas a menina estava cansada demais para ficar com medo.
― Chega… por favor, … vamos … devagar ― disse ela ofegante com a mão no coração e dando paradas para respirar.
E para sua surpresa, o fantasma assustador sorriu e ofereceu a mão:
― Peço perdão, senhorita. Como eu não sinto cansaço pelo fato de ser um fantasma, esqueci que você é humana. Estava pensando no que fazer quando chegarmos. Nunca imaginei que os versos da profecia eram verdadeiros e que um humano não teria medo de mim. Por favor, me perdoe.
Virgínia olhou para o fantasma e não pode evitar de sorrir com sua educação.
― Eu lhe pedoo, Sir Simon. Apenas vamos mais devagar daqui para frente.
― Obrigada, senhorita. Vamos então!
A menininha da família Otis aceitou a mão do fantasma e se levantou. Tentou dar pelo menos uma pequena limpada na parte do seu vestido que ela havia sentado com a outra mão, pois não queria soltar a mão do fantasma. Eles recomeçaram a andar, dessa vez andando e observando tudo a volta: o padrão do piso, a sujeira dele, o violeta das paredes e tetos. Caminharam por cerca de 30 minutos em silêncio, até que Virgínia perguntou:
― O que vai acontecer quando chegarmos aonde estamos indo, Sir Simon?
Este levou um susto e respondeu:
― Exatamente o que eu já havia explicado há… ― ele olhou seu relógio de bolso ― dois minutos? Olha, essa tecnologia era nova na época, mas parece que está um pouco… errado.
― Quer que eu lhe empreste o meu? ― perguntou Virgínia.
― Ahhhh! Você poderia me dizer qual é?
― Qual é o quê?
― Ué, qual o … ah, não sei! Pode me emprestar, então? ― insistiu Sir Simon.
― Claro!
O fantasma, então, olhou concentradíssimo para o relógio de bolso e respondeu:
― Realmente, essa tecnologia não é de meu conhecimento ― devolveu o relógio. ― Vou estima em cinco horas de caminhada, desde que eu lhe disse que a senhorita deveria chorar pelos meus pecados, porque não tenho lágrimas, e rezar pela minha alma, porque não tenho fé, para o Anjo da Morte possa…
― Espere um minuto, nós estamos aqui há cinco horas? ― exclamou Virgínia. Sabia que tinha se passado bastante tempo, de fato, mas não podia acreditar que estavam caminhando há cinco horas naquela caverna escura e fria.
― O tempo não tem uma duração definida quando se está tão perto dos demônios e poderes do inferno ― ponderou o fantasma.
― Mas por que não dos Anjos da Vida? O senhor prefere ir para os braços de um Anjo da Morte do que viver neste corpo?
― Essa é a questão: minha forma não tem definição precisa. Então não tenho corpo nem sou defunto! Eu não tenho forma. Eu não tenho definição. Eu tenho apenas as duas emoções principais que me representam: a raiva e o medo. Por isso, essas são as duas coisas que posso sentir por sua profana família!
O fantasma olhava para frente de forma poética, enquanto dizia suas deprimentes palavras. Quando terminou de falar, olhou para Virgínia, que o estava encarando com uma cara de tédio estampada no rosto:
― Francamente, Sir Simon! Se o senhor prefere apressar o passo e o seu modo de expressar isso é falando essas coisas desinteressantes, eu prefiro, sinceramente, correr bastante.
― Não era esse exatamente o meu objetivo, mas aceito…
Eles começaram a caminhar com um passo mais apressado, como se fosse alguém atrasado para o trabalho, mas com vergonha de correr em um espaço público. A distância da grande porta de carvalho e eles já podia ser vista, a luz verde emitida pelo fantasma já era suficiente para iluminá-la. Eles pararam diante da porta, na qual havia uma placa de metal com as escrituras da velha profecia da janela da biblioteca. Sir Simon tocou com seu dedo fantasmagórico a primeira letra da profecia e, em seguida, passou por todo o resto, com sua voz embargada acompanhando:
Se a jovem de tom dourado
Tirar prece do pecado
Se a amêndoa estéril gerar
Pranto de infante a chorar
A casa quieta ficará
E Canterville paz terá.
O fantasma pegou o dedo de Virgínia e o colocou no meio da placa de metal. Não se sabe qual foi o mecanismo utilizado, mas a porta se abriu rangendo, revelando um quarto pequeno de teto abobadado; embutidas na parede haviam correntes que prendiam os pulsos de um esqueleto, que estava deitado, parecendo estar buscando um trinchante, com uma grossa camada de poeira em seu fundo, e um cântaro com musgo esverdeado no fundo, mostrando que antigamente havia água dentro e comida no trinchante. Virgínia ficou espantada com a quantidade enorme de energia que emanava daquele lugar. Eles começaram a entrar e o fantasma gritou entusiamado, assustando Virgínia que deu um pulo:
― Aquele! Aquele era meu corpo!
Virgínia deu um grito, mas foi ignorada pelo fantasma.
― Veja meu esqueleto forte da época da juventu… ― quase levou um tapão de Virgínia na orelha.
― Exijo uma explicação, Sir Simon! O que aconteceu nessa sala? De quem é esse esqueleto? Que objetos são esses? Quem prendeu esse esqueleto com as correntes?
― Pedoe-me, senhorita, mas as únicas coisas de que eu posso falar são de meus velhos e esquálidos ossos e da causa de minha morte. Apenas me lembro dos dois irmãos de minha amada, descobrindo o que aconteceu com ela, enquanto eu, o culpado daquilo, fugia ileso.
― Mas como o senhor tem coragem de chamar a mulher que o senhor assassinou de “amada”? Se o senhor a amava, por que a assassinou, por que tirou-lhe a vida? ― perguntou Virgínia com o rosto coberto de lágrimas.
― Essa é a questão: na época em que cometi o crime, meus olhos estavam cegos para o amor que sentia por ela, cobertos pela venda negra da raiva, da raiva de coisas tolas para as quais não deveria ter dado atenção. Por não ter chorado naquela época, não posso chorar agora que finalmente me arrependo. Por isso preciso da senhorita.
Virgínia se ajoelhou aos prantos, chocada com a crueldade das mortes, cansada da longa caminhada.
― Coitado do senhor… morto … de fome … de sede… obrigado a observar … a comida e a água… enquanto agonizava… Como isso foi cruel!
― Espere … obrigado a observar enquanto morria de fome e sede? Acho que me recordo…
― Sim… veja como o esqueleto está buscando pegar o que tinha dentro dos recipientes, sem contudo alcançá-los.
Um estrondo sacudiu a masmorra, derrubando pó e poeira. Um ser de aparência negra rodopiou surgindo das sombras do esqueleto. Ele tinha uma foice, asas e uma capa completamente negra, a ponto de quase sugar a luz que o fantasma emitia. Com uma voz estrondosa ele falou:
― A profecia está quase completa, Sir Simon. A jovem de tom dourado veio salvá-lo, chorando e rezando pelos seus pecados. Quando o ritual tiver terminado, sua alma será libertada para o mundo dos mortos. A primeira parte já está completa. A senhorita Virgínia chorou pelos seus pecados. Porém, ainda lhe falta rezar pela alma do fantasma. A senhorita deverá escutar a prece que será rezada e deve repeti-la com atenção. Diga “INFERNO” quando estiver pronta.
Virgínia, atônita, olhou para o fantasma, com quem estava de mãos dadas até aquele momento, ansiosa. Sir Simon assentiu reconfortantemente com seu brilho fantasmagórico. Então ela olhou confiante para o ser negro e falou:
― INFERNO.
Um brilho negro paranormal explodiu e, a partir desse momento, tudo estava fora do entendimento humano. Quando a prece acabou, uma porta negra surgiu na lateral e Virgínia se despediu para sempre do fantasma de Canterville Chase. Antes de partir, porém, Sir Simon lhe entregou um presente de agradecimento e despedida: uma caixinha de joias linda, de uma cor negra com lacinho cinza. A porta se fechou as suas costas e ela voltou pasma e amadurecida para sua família.